segunda-feira, 11 de março de 2013

Gays e o discurso falocrático

Essa discussão surgiu com uma publicação da Daniela Andrade no grupo da Associação Brasileira de Transgêner@s - ABRAT no Facebook, aliás, um grupo com discussões bem interessantes sobre as questões de gênero. Reproduz fielmente uma situação corriqueira entre os gays: a de que o gay afeminado seria inferior, exatamente por ser afeminado, e fora do padrão desejado pelos mesmos, o do "machão", o que não "dá pinta", o que "não parece que é gay". Pequenas descrições que passam despercebidas, mas que só reforçam o caráter opressor do discurso machista e falocrático mesmo num meio onde este discurso não deveria existir. Abaixo reproduzo o comentário da colega.

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Uma das coisas que sempre achei extremamente ridículo (para não fazer uso de palavras piores) dentro do meio gay (frise-se o termo gay) é a tamanha misoginia e o machismo de grande parte dos gays, salvaguardando poucas exceções.

E, foi também essa característica frequente entre gays (a aversão pelo feminino) que forneceu bastante subsídio para eu ir de encontro com uma verdade que só demorou a aflorar por eu não ter tido qualquer conhecimento sobre transexualidade ao longo da vida: a de que eu era uma mulher tentando me comportar como um homem gay; enfim, para sempre fadada ao fracasso dentro de um papel que não era meu, caricatura de mim mesma.

Uma discussão há pouco com uma amiga, que suscitou o extraordinário paradoxo de ver gente (muitos gays também) usando de homofobia para combater homofobia e, na tentativa de deslegitimar o pastor Feliciano, chamá-lo de "passivona" e bradar "saia do armário, enrustida" fez eu lembrar alguns fatos da minha vida.

É muito importante nesse caso observar o gênero dos adjetivos usados para desmerecer o pastor, todos no feminino.

Pois bem, uma característica que as pessoas, quando começam a frequentar o meio gay logo notam, é o fato de que frequentemente ouvirá gays tratando um ao outro no feminino como forma de chacota ou mesmo como ofensa (sim, há também os que naturalizaram isso). E, em tantas discussões entre gays verá um chamando o outro de "passiva". Perceba que o termo "ativa" ou "ativo" jamais é usado como algo no campo da inferiorização, pelo contrário, ser visto ou chamado como ativo é o mesmo que se colocar como troféu cobiçado.

Quando você passa a frequentar, por exemplo, salas virtuais de bate-papo gay, uma das perguntas primeiras é se você é afeminado. Ser afeminado é tido e taxado como degradante, e se você assim se colocar, será logo descartado: o seu interlocutor apressa-se em dizer "é que eu não sou afeminado e nem curto". E, com isso, eu mesma vi muitos gays afeminados tentando se "travestir" de masculinizado e assumir uma expressão de gênero não genuína, na ânsia de ser aceito e respeitado dentro do meio gay. É bom salientar aqui a força que um homem que se diga 'bem dotado' possui dentro desse grupo, e quanto aos demais não dotados... bem, aos demais que se contentem com as sobras, afinal, símbolo de masculinidade é se dizer dono de um pênis colossal. E sim, saber o tamanho do pênis é uma das perguntas primeiras também nesses locais (salas de bate-papo, saunas...).

Muitas vezes percebi misoginia partindo inclusive daqueles gays vistos como "os que mancham o grupo gay por tentarem imitar uma mulher" (sim, ouvi muitas vezes de gays coisas do tipo: "pode ser gay, mas para quê desmunhecar?", "pode ser gay, mas para quê querer ser mulher?". Certa feita, estava eu numa boate GLS (sou do tempo da sigla GLS, que o T era visto como "esses gays que se travestem") e um casal de héteros beijava-se ao meu lado e ao lado de uma roda de amigos, todos gays. Dois deles ficaram horrorizados com aquela demonstração de afeto e confessaram: "Por que permitem esse tipo de gente entrar aqui? Agora temos que aturar isso até no nosso espaço?".

Fiquei pensando um pouco sobre isso mais tarde e vi o quão paradoxal era aquela posição daqueles dois amigos gays, na tentativa de se livrarem do preconceito, praticavam outro; na tentativa de se livrarem da exclusão, eram eles mesmos os que excluíam. Paulo Freire trata disso em 'Pedagogia do Oprimido', quando ele diz que o oprimido, quando possibilitado, muitas vezes transforma-se ele próprio no opressor; agora, como vingança, a fim de descolorir um pouco toda sua história de quem foi perseguido. Sempre vi como um grande problema que os gays, de modo geral, preferissem viver em guetos; como se isolados do restante da população, a solução para o problema estivesse dada.

Continuo até hoje defendendo que nós, minorias marginalizadas, devemos mostrar nossas caras, o que somos e como somos em todos os locais onde aos demais é permitido. E, portanto, mesmo como mulher transexual - que porventura posso não ter nada da chamada passabilidade (aquele grau de feminilidade conferido a algumas mulheres transexuais que as colocam acima de "qualquer suspeita", acima de qualquer dúvida aos olhos dos demais, nada tendo de masculino fisicamente para que a sociedade cissexista e binarista duvide, tamanha mimetização com as mulheres cis), nunca me furtei a estar em todos os locais e a todo momento que a mim fosse conveniente, mostrando a minha cara, mesmo com especulações, risos e murmúrios: nas baladas, nos shoppings, nos transportes coletivos, na padaria, nos shows, nos parques (...) E, mesmo com as tais perguntas, no começo da minha transição: "Mas você não tem medo de ser agredida saindo montada?" eu sempre respondia: "Olha, eu só tenho medo de não ser eu mesma, eu só tenho medo de não viver a vida de acordo com o que sou de fato e, se eu tiver de morrer por ter sido eu mesma, morrerei tranquila, não terei feito mal a ninguém, meu mal, talvez, foi apenas ter ousado ser o que sou e desse mal não abro mão".

Mas enquanto estive no meio gay, parecia que o bom mesmo para a grande maioria era fechar-se em claustros e clubes onde só gays eram permitidos - talvez uma lésbica ou outra, desde que se admitissem que a última palavra seria dos gays.

Eu, como o gay mais afeminado entre todos, sempre estive para escanteio. Pois, se você é dessa forma, servirá mesmo para ser visto pelos demais como promessa de drag-queen caricata, nada mais. E, pela impossibilidade de preencher o currículo de "homem másculo" que grande parte dos gays buscam, acabará pulando de galho em galho, vivendo a solteirice de quem é visto como "um buraco feito para se usar".

E veja, há inclusive um mito de que um homem gay exclusivamente ativo é algo tão fora do comum, que se ele existir (todos gays duvidam dos que se dizem exclusivamente ativos) pode se dar ao luxo de dizer que não é gay ou "quase" não é gay, e ser inclusive bem aceito dessa forma por grande parte dos demais gays. Sim, e se ele também transar com mulheres, aí ele alcança o monte Olimpo da masculinidade e ganha o posto de macho a ser venerado pelos demais. Agora, aos exclusivamente passivos... esses é só para darmos boas risadas e logo de antemão, tratarmos no feminino. É uma coisa bem perceptível, diga-se passivo no meio gay e o seu interlocutor passa a te ver/tratar no feminino com toda naturalidade do mundo, e como se o fato de muitos aceitarem isso, você também devesse aceitar.

Vejo que há muita explicação nisso para a transfobia que vem de grande parte dos gays, dentro do próprio meio LGBT, da impossibilidade de nos aceitarem, mulheres travestis e transexuais, como mulheres. O que já ouvi de gays de que eu só serei mulher quando tiver uma "racha", não tá no gibi. Aliás, por tocar nesse termo, veja que a própria denominação de mulher, para muitos gays é a denominação do órgão genital que as mulheres cis e as trangenitalizadas possuem: a vagina.

Uma mulher é nomeada também de "a racha" (que também define aquilo que as mulheres todas, supostamente, têm entre as pernas) ou amapô (título conferido apenas às mulheres cis). Mas claro, há os que vão dizer que é apenas humor e todo mundo aceita numa boa - ai de quem não aceitar, não é mesmo?! E com esse humor vamos naturalizando preconceitos dentro de um grupo que é rechaçado a todo tempo com preconceito.

O feminino e tudo quanto toca o feminino parece ser visto como um grande tabu, e próprio do terreno da alegoria ou do proibido, para muitos dos gays. E, parte daí, a visão machista, misógina e transfóbica de que travesti é um homem gay com roupa de mulher - sim, eles gostam de fazer a separação, transexual já é um nível "superior" de feminilidade e já se pode respeitar um pouco mais; travesti não, travesti é para escrachar mesmo.

Claro que não estou falando de todos os gays, inclusive tenho amigos gays incríveis e pessoas que respeitam extraordinariamente travestis e transexuais e, claro que há muito preconceito vindo também de travestis e transexuais. Não tive a intenção de escrever um tratado sobre o preconceito dentro do meio LGBT; outrossim, manifestei uma observação minha sobre a indeferência do feminino dentro do meio gay, vindas da minha própria observação dentro desse meio que frequentei/frequento há décadas.

O que acho impreterível é que as pessoas dentro desse meio passem a ter uma visão mais abrangente sobre inclusive quem são as personagens promovidas pela sigla LGBT, quais suas particularidades e quais suas necessidades. E também lembrar-se que a sua visão sobre determinada identidade, o seu tratamento para essa identidade, pode significar ferir de morte pessoas que simbolizam essa identidade. Se tivermos de ser um grupo coeso nominalmente, também teremos de ser um grupo coeso ideologicamente, também devemos nos atentar para o respeito às particularidades daquilo que compõem o gay, seja ele ativo, seja ele passivo, seja flexível; seja ele afeminado, seja ele masculinizado, seja ambos; a lésbica masculinizada, feminina, e a que rompe com esse conceito dicotômico; o bissexual e a bissexual - sim, eles existem e devem ser legitimados e claro, as pessoas travestis / transexuais / transgêneras, grande parte das vezes meras figurantes dentro dessa sigla, dada a invisibilização que sofrem.

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